Manuel Amaro Mendonça
Todas as histórias são reais… mesmo as imaginadas.
Há dez anos a cruzar memória, paisagem e imaginação.
Vem conhecer momentos inesquecíveis
O nevoeiro deixara um ar húmido e frio, mas límpido. Conseguiam-se enxergar quilómetros, a partir daquele temível promontório, debaixo das nuvens negras e ameaçadoras. O vento, era a voz de Deus, que sussurrava pelo vale com o restolho dos pinheiros e sobreiros das encostas.
De chapéu bem enterrado na cabeça e cachecol a proteger o nariz e a boca, deixou-se ficar por ali, o olhar perdido nos montes longínquos. O imponente Marão, no limite do horizonte, exibia as cristas cobertas de neve. Era a fronteira para outro mundo onde ficara a sua vida de estudante e boémio.
in “Lágrimas no Rio” de Manuel Amaro Mendonça
Textos que caminham contigo
Aqui, cada palavra tem o seu próprio tempo
Paraíso era um local tão seguro que as crianças brincavam à vontade nas ruas um pouco sinuosas, empedradas, ora a descer, ora a subir. Andavam pelos campos, colhiam flores silvestres e brincavam com os animais. Iam muitas vezes até ao rio que, não sendo muito caudaloso, lhes proporcionava belos banhos no Verão. Ouviam a música saltitante das suas águas, que as fazia piruetar em bicos de pés quais bailarinas em pontas num palco de fantasia. Eram felizes aquelas crianças!
in “As Fadas da Floresta” de Lucinda Maria
Nem uma porta aberta. Nem vivalma.
Na ausência da placa que anunciasse a existência deste negócio, poderia existir uma porta, com os vidros sujos de caganitas de moscas, que desse acesso a um interior em que se amontoasse carvão, roupa interior, alimentos processados, peixe congelado e aspirinas, mas, nada de nada anunciava a existência destes resquícios do século passado.
Nem o alumínio pintado com o cavalinho que dizia “correios, posto público” que persiste em muitas aldeias, e que aqui também continua a existir.
Ou então uma qualquer placa indicativa de um lugar a apontar “é por ali”.
Não! Nada! Aqui chegados, é aqui e nada outra coisa ou outro lugar.
in “Setenta e um” de Carlos Arinto
Sempre gostei do outono, nem tanto pela chuva ou pelo frio, que remete as tardes mortas para o recolher de uma lareira. É pelas cores quentes que as árvores adquirem enquanto não ficam totalmente despidas. É pelas delícias da época: a marmelada caseira, a geleia, os figos, as castanhas assadas…. É pela saudade, pela nostalgia e pelo reencontro comigo próprio numa agenda leve, depois de um verão rico em excessos.
in “A Vindima” de Suzete Fraga
O pai levava-a para a pesca sempre que havia tempo e o mar estava
de feição. Nazaré devia ter nascido homem, dizia ele, reconhecendo
na filha a força que faltava a muitos que faziam do mar o seu sustento. A pequena Nazaré não percebia a razão pela qual tinha de ficar
em casa, ou a ajudar a mãe a vender o peixe pelas ruas de Matosinhos. Passava o tempo a fugir de casa, a jogar à bola e a lutar com os
outros rapazes. Com o tempo, passaram a dizer que ela era louca.
Nazaré, a Louca. Ali vai a Louca. Corram, que ela vai partir-vos os
dentes. E os rapazes fugiam dela. Da Nazaré, a Louca.
in “A Louca e o Mar” de Jorge Santos
Todos os sábados, Vilela visita a campa 25 da última secção no cemitério de Agramonte, a campa onde também ele está enterrado, por enquanto sobrevivente. Pousa uma mão cheia de flores do campo, leitugas ou malmequeres, que foi apanhando pelo caminho até lá chegar, e fica ali a conversar com a mulher, conversas que só com ela as pode ter. Senta-se na beira de um jazigo mesmo ao lado, enquanto ouve o que a Ermelinda lhe responde e lhe puxa as orelhas, sente-as quentes, em contraste com as lágrimas frias que lhe correm no rosto.
in “Cemitérios” de Fernando Morgado
Memória
Textos que nascem da terra e do tempo.
Presença
Autores que escrevem como quem escuta.
Travessia
Livros que não se encerram — abrem caminhos.
Debaixo dos Céus não é um lugar,
é uma travessia
Se quiseres escutar o tempo…
